O Golpe Militar de 1964
Documentário: "Música e Censura - Caminhando em Sentidos Opostos"
Historiografia e Música Cafona
A música cafona, também chamada brega, foi excluída durante muito tempo da produção historiografica sobre música popular brasileira. Talvez influenciada pela rejeição, por parte da dita intelectualidade, que faz juízos de valor preconceituosos contrapondo a música popular brega e a música popular “culta”. O primeira seria voltada para um público “alienado” e o segundo o público “politizado".
Como nos diz o historiador Paulo César de Araujo:
“Portanto, como até agora a história da música popular brasileira foi escrita e “enquadrada” por uma elite intelectual que despreza tudo aquilo que não foi identificado à “tradição” ou à “modernidade”, é esta elite que, em última análise - e valendo-se daquilo que Marilena Chauí chama de discurso competente – define o que é bom ou ruim, o que merece ou não ser preservado na memória musical do pais.”[1]
Gerações de artistas populares não identificados com o tradicional ou o moderno, são excluídos pela elite intelectual que por sua vez vai procurar fazer valer o seu ponto de vista sobre a massa. Nelson Ned, um dos artistas associados a música cafona, lotou duas vezes o famoso Carnegie Hall, em New York, EUA, palco onde se apresentaram Frank Sinatra e Ray Charles, João Gilberto e Tom Jobim. Hoje cantor Gospel, ainda não recbeu o devido reconhecimento historiografico por parte da historiografia. Junto a ele artistas como Altemar Dutra, Nelson Gonçalves, Cauby Peixoto, Emilinha Borba e Ivon Curi (só para citar os mais conhecidos) foram relegados ao ostracismo.
Tão importante para a compreensão de nossa sociedade quanto a bossa nova ou o tropicalismo, a música cafona deve ser analisada enquanto documentos históricos. Há toda uma produção rica e diversificada que podemos encontrar por todo o país. E nós historiadores somos tão formadores de opinião quanto a mídia. Não devemos deixá-la nos apresentar o que esta perniciosa e pretensiosa elite intelectual julga ser a representação de nossa cultura.
[1]ARAÚJO, Paulo César de. Eu não sou cachorro, não: música popular cafona e ditadura militar. 5. ed. Rio de Janeiro: Record, 2005. Pg 363.
Patrulha Ideológica
Durante a ditadura os chamados patrulheiros ideológicos defendiam a “arte engajada”. A censura e a intolerância não eram exclusividade da direita ou do regime. Artistas, estudantes e jornalistas engajados eram tão repressivos quanto os censores da ditadura. Vigiando toda a produção cultural do país, condenavam qualquer possível simpatizante do regime militar ou omissos politicamente. As críticas eram tão duras que muitas vezes encerravam a carreira de determinados artistas os os obrigavam por vias tortas a se posicionarem. Para o jornalista Henfil, um dos colaboradores de O Pasquim, importante semanário publicado de 1969 a 1991, não havia meio termo: ou se é contra ou a favor da ditadura. Em sua coluna entitulada “o cemitério dos mortos vivos” ele fazia o enterro daqueles que simpatizavam ou se omitiam ao regime militar.
O Pasquim, teve papel importante para sacramentar o fim de carreira prematura dos irmãos Dom e Ravel e também de Wilson Simonal. Não que os artistas não tivessem sua parcela de culpa, mas como formadores de opinião, os jornalistas foram implacáveis e não pouparam críticas diante dos fatos.
Dom e Ravel, compuseram a música “Eu te amo meu Brasil” elogiada pela esfera governamental, a ponto do então governador de São Paulo em 1971, Paulo de Abreu Sodré, sugerir que fosse transformado em hino nacional. O presidente Médici simpatizou com a dupla e isso bastou para que fossem assediados por várias pessoas ligadas ao governo federal. Bastou para que O Pasquim os taxassem de mediocres. Eles foram rejeitados pelo público de esquerda que associou suas composições como ufanistas. A entrevista que concederam a revista Veja em fevereiro de 1971, foi a gota d´água para formar a imagem de mercenarios e oportunistas. Afirmaram ter feito a música “Eu te amo meu Brasil” por dinheiro e associaram falta de higiene e consumo de drogas ao anarquismo. Anos mais tarde justificaram as declarações ao mesmo que ainda ocorre nos dias de hoje, com os artistas do momento, que rapidamente tornam-se decadentes ou caem no ostracismo: falta de estrutura, base emocional e profissional e orientação.
Em 1971 também, Wilson Simonal, que tinha uma carreira sólida a quase 10 anos, viu seu mundo cair. Um escandalo envolvendo o ex-contador da Simonal Produções, Raphael Viviani demitido por justa causa por conta de um suposto desfalque, moveu um processo contra Simonal acusando de ligação com o DOPS, alegando ter sido vítima de sequestro e tortura em uma das agências do orgão de repressão. Tão logo o caso foi parar na imprensa Simonal foi taxado de dedo duro e informante da repressão no meio artístico. Henfil e O Pasquim, foram mais uma vez implacáveis: sacramentaram o fim da carreira do artista.
Ivan Lins e Elis Regina quase tiveram fim semelhante. Após serem entrevistados pelo O Pasquim foram cobrados a se posicionarem a favor ou contra o regime e diante da negativa de apoio intimados a mostraem isso em sua produção musical. Ambos trocaram letras com conteúdo taxado de ufanista pelos críticos para canções veladas de protesto. Segundo alguns artistas era preferivel enfrentar a censura oficial da direita, do que a oficiosa da esquerda.
Segundo Paulo César de Araujo:
“Mas, paradoxalmente aqueles cantores/compositores que se posicionaram como críticos e opositores a este mesmo regime conseguiram, apesar de prisões e censura, dar prosseguimento normal às suas carreiras. O que demonstra que pelo menos no campo da música popular, a ação das patrulhas ideológicas foi tão intensa quanto as forças da repressão politica. Entretanto, esta última cessou com o fim do regime militar; a outra atinge suas vítimas até os dias atuais.”[1]
[1]ARAÚJO, Paulo César de. Eu não sou cachorro, não: música popular cafona e ditadura militar. 5. ed. Rio de Janeiro: Record, 2005. Pg 292.
O padrão TV Globo de qualidade
Entenda-se aqui o termo cafona classificado como feio. Esta feiura contudo não é na imagem ou na sonoridade, mas na essência. Segundo a elite intelectual faltava à música cafona o refinamento.
As novelas da TV Globo contam histórias cujas temáticas não diferem muito das músicas cafonas. Porém, entre 1969 e 1978 foram aproveitadas nas novelas da TV Globo 600 faixas musicais para composição das trilhas sonoras das produções. Porém os artistas ditos cafonas, não tinham suas músicas entre as faixas escolhidas.
A principal justificativa é o padrão estético adotado pela TV Globo em suas produções a partir de 1970. Logo aós a inauguração da emissora em 1965, nomes hoje associados a cafonisse como Dercy Gonçalves e Abelardo Barbosa, o Chacrinha, foram importantes para sedimetar a audiência entre as classes mais baixas da população. Quando começou a se consolidar passou a adotar uma estética glamourizada ou então anti-séptica em suas produções. E o cafona obviamente não fazia parte deste padrão.
Abelardo Barbosa e seu programa A Discoteca do Chacrinha, deu visibilidade e popularidade a emissora. Cantores como Wando, Agnaldo Timóteo, Odair José e Nelson Ned sempre tiveram espaço. Com a adoção de um novo padrão estético, o velho guerreiro, teve que se enquadrar e o seu relacionamento com José Bonifácio de Oliveira Sobrinho - o Boni a deteriorar. Em 1972 como a situação ficou insustentável ele rescindiu o contrato. Com sua saída, foram embora também os cantores populares. Para ocupar o espaço, foi criado o programa Fantástico. Chacrinha voltaria nos anos 1980, mas já não era o mesmo.
A TV Globo se consolidou na década de 1970 e sem concorrentes a altura, ditava as regras do mercado cultural. Compositores e cantores que apareciam nela pela primeira vez rapidamente alcançavam o sucesso. Muitos consolidaram suas carreiras jogando pelas regras da emissora. Os demais eram esquecidos tão rápido quanto haviam surgido. Afinal, como diz o dito popular: quem não é visto, não é lembrado.
A seguir, o trailer do filme "Alô, Alô Terezinha", direção de Nelson Hoineff, distribuição: Imovision Setembro 2009.
MÚSICA E CONTESTAÇÃO POLÍTICA
Os artistas e o público da música popular romântica não tiveram relação direta com o AI-5 e com as manifestações realizadas pela elite e pela esquerda durante aquele período. Sua decretação não afetou os cantores “cafonas”. Alheios as questões políticas, ocupados e preocupados em trabalhar para poder se sustentar e sustentar suas famílias, eles revelam a Paulo Cesar de Araújo que não participaram das manifestações e que o AI-5 pra eles não foi importante. Claudio Fontana, por exemplo, afirma que tinha que voltar a pé pra casa do trabalho porque os ônibus não passavam em decorrência das manifestações no Rio de Janeiro (ARAÚJO, 2005, p. 40).
Mas mesmo estando “desligados” da questão política “a produção musical desses artistas vai denunciar o autoritarismo vivenciado pelos segmentos populares em nosso país” (ARAÚJO, 2005, p.48).
O vendaval ufanista também arrastou artistas da MPB que transitavam pelos círculos da esquerda, é o caso de Ivan Lins, que no V Festival Internacional da Canção, em 1970, apareceu com a composição O amor é o meu país. “A oposição protestava mas as adesões se ampliavam”.
“Não suporto essa espera de rever o que é meu
Vou contar, na minha terra, tudo que me aconteceu
Eu cheguei aqui há pouco, mas aqui não fico mais
A saudade em mim é tanta de rever meu lar, meus pais”.
“O mais grave hoje no Brasil é que muitas das vozes que clamavam contra a tortura no tempo do regime militar silenciaram, e constata-se agora uma certa complacência da sociedade – para não dizer o aplauso de setores das elites e de muitos segmentos médios. É como se a tortura praticada contra os estratos mais baixos da população não fosse tão grave assim. É como se não existisse mais tortura no Brasil”. (ARAÚJO, 2005, p. 249).
___________________
ARAÚJO, Paulo Cesar de. Eu não sou cachorro, não: música popular cafona e ditadura militar. Rio de Janeiro: Record, 2005.